
Manaus avança para assumir um papel singular na Amazônia: o epicentro da bioeconomia — esse novo modelo que busca converter a superabundância de biodiversidade, conhecimento e tecnologia da região em produtos, serviços e cadeias de valor sustentáveis. É uma aposta visionária, mas com ingredientes reais: fundo de fomento de P&D garantido por lei, base industrial, multiplicidade de centros de pesquisa, bom número de incubadoras e aceleradoras, investidores e empreendedores dispostos a pagar o preço dessa nova economia verde, além da construção de políticas públicas para consolidar a segurança jurídica e amparo legal aos novos negócios.
Some-se a tudo isso o fato de a bioeconomia ser vista por todos como vetor de transição para o desenvolvimento sustentável. Assim, consegue agradar tanto os adeptos da visão mais conservacionista como aqueles que defendem ações desenvolvimentistas na Amazônia. É um elemento agregador que permite colocar à mesa organizações da sociedade civil, cooperativas, empreendedores, pesquisadores e agentes públicos num diálogo que tem o mesmo objetivo como norte.
Essa conjunção de fatores traz ânimo renovado às expectativas de olhar a bioeconomia não como o futuro, mas como realidade prática, palpável e vista por todos. “As políticas públicas aqui da região, elas têm sido um motor, uma mola importante para essa decisão de empreender. Temos o próprio PPBio como um ator aí muito importante, a Finep, a Fapeam também atuando nesse sentido de buscar soluções para a exploração dessa biodiversidade. Então isso acaba ajudando pesquisadores e pessoas que pretendem empreender”, afirmou o pesquisador, farmacêutico e empreendedor Emerson Lima, sócio-fundador da Terramazonia, indústria fabricante de produtos alimentícios da Amazônia.
A Terramazonia é uma indústria de base tecnológica sediada em Manaus que atua desde 2014 transformando a biodiversidade amazônica em superalimentos funcionais. Seus produtos — como blends em pó e alimentos veganos — são desenvolvidos a partir de conhecimentos científicos e saberes tradicionais, com processos próprios de secagem que preservam os nutrientes e sabores dos ativos da floresta.
“A gente optou por trabalhar com a linha alimentícia, aproveitando o meu conhecimento sobre a biodiversidade, sobre os produtos, sobre as plantas e tudo que a gente sabe sobre a farmacologia bioquímica envolvida nesses nutrientes. Com o objetivo de desenvolver um negócio explorando as funcionalidades desses produtos, desses ativos amazônicos”, acrescentou Emerson.
O diretor-executivo do INDT, Geraldo Feitoza, ilustra mais dois exemplos de sucesso de impacto real na Amazônia, com envolvimento de comunidades locais. O projeto Green Harvest, desenvolvido pelo INDT em parceria com Idesam, Inatú Amazônia na RDS do Uatumã, automatizou uma mini-usina de óleos vegetais, localizada entre os municípios de Itapiranga e São Sebastião do Uatumã. Isso possibilitou a modernização técnica e também aumento da produtividade, com maior valor agregado aos produtos da floresta e abertura a novos mercados.
Outro exemplo vem do projeto Açaí Biotech Lab, promovido pelo INDT Educacional no município de Anori. No local, foi formada uma turma de alunos que desenvolveram 16 pitches de ideias de negócios inovadores a partir do açaí, desde soluções tecnológicas para melhoria do processo de beneficiamento, bem como reaproveitamento de resíduos e criação de startups voltadas à bioeconomia local. “Essa iniciativa evidencia como o investimento em educação, pesquisa aplicada e empreendedorismo comunitário pode gerar soluções locais escaláveis”, explicou Geraldo.
Recursos insuficientes
Apesar dos cases de sucesso, o volume de recursos para investimentos ainda é deficente diante do desafio de trazer ao mercado produtos e serviços da biodiversidade amazônica. Carlos Koury, diretor de Inovação em Bioeconomia no Idesam, ilustra a disparidade do olhar oferecido à Amazônia pelo governo federal, frente ao enorme obstáculo de criar negócios sustentáveis na região.
“O MDIC disponibilizou via edital da Finep R$ 6 bilhões para a promoção de combustíveis sustentáveis de avião. Entendendo que ele considerou que esse é o valor necessário para criar uma nova cadeia produtiva, usando essa referência, precisaríamos de uma escala desta para cada cadeia produtiva da Amazônia se consolidar com mais propriedade. O PPBio em seis anos aplicou R$ 100 milhões em 23 cadeias. Então, essa política pública dá sua contribuição, mas a Amazônia precisa de mais”, afirmou.
O Idesam é um instituto com sede em Manaus que atua na coordenação do PPBio aproximando as indústrias com obrigação de investimentos em P&D do Polo industrial de Manaus com atores da bioeconomia. O Programa Prioritário de Bioeconomia (PPBio) é um projeto do governo federal desenvolvido para integrar todos os atores da pesquisa em biodiversidade. Ele tem origem em recursos do PD&I (Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação) da Lei de Informática (Lei nº 8.248/1991, alterada pela Lei nº 13.969/2019), que estabelece contrapartidas aos benefícios concedidos na ZFM, sob o guarda-chuva da Suframa.
Na coordenação do PPBio, o Idesam apoia o desenvolvimento de práticas sustentáveis e inovação em bioeconomia na Amazônia. Sua atuação é direta com as comunidades tradicionais, favorecendo negócios e organizações para o fortalecimento de redes produtivas, facilitando a conexão de atores do ecossistema bioeconômico.
“Temos muitas agendas disponíveis, mas para atingir a escala que se espera para a Amazônia precisamos de muito mais recursos. Sem uma disponibilidade orçamentária à altura do desafio que é estabelecer uma nova economia para uma região que corresponde à 50% do país, vamos continuar com dificuldades de atingir o sucesso”, acrescenta Koury.

Ponte entre a pesquisa e o mercado da bioeconomia
Institutos de ciência e tecnologia e as incubadoras que atuam ligadas a eles são elementos facilitadores fundamentais nos arranjos pela bioeconomia. Em Manaus, instituições como a Fundação Paulo Feitoza (FPF Tech) e o Instituto de Desenvolvimento Tecnológico (INDT) têm desempenhado um papel cada vez mais relevante no esforço de conectar ciência, tecnologia e negócios sustentáveis dentro da chamada economia da floresta.
Por meio da incubadora WIT, criada em 2020, a FPF Tech apoia startups que desenvolvem soluções baseadas em recursos naturais da Amazônia — de cosméticos e alimentos funcionais a novos materiais e bioinsumos agrícolas. O trabalho envolve mentorias, capacitações, consultorias e aproximação com investidores e indústrias, dentro de um modelo que busca transformar conhecimento científico em produtos de mercado.
Segundo o diretor da fundação, Luís Braga, a aproximação entre universidades e empresas é um movimento cada vez mais concreto. Essa conexão vem sendo reforçada por acordos de cooperação técnica com instituições de pesquisa. A ideia é aproveitar o potencial científico existente e reduzir o tempo entre a descoberta e a aplicação comercial. “As incubadoras, como a da Fundação Paulo Feitoza, funcionam como pontes que transformam esse conhecimento em soluções de mercado”, resume Braga.
Hoje, o portfólio da WIT reúne startups em diferentes estágios de maturidade. Algumas desenvolvem bioinsumos agrícolas e cosméticos naturais, outras trabalham com fitoterápicos para doenças crônicas, alimentos veganos, produtos à base de pescado e até com energia limpa — como mini-hidrelétricas para rios de baixa correnteza. Há ainda empresas voltadas à gestão de resíduos sólidos e plataformas digitais para comercialização de insumos regionais. “Há uma nova geração de empreendedores e pesquisadores comprometidos em construir soluções sustentáveis para o Brasil e para o mundo a partir da Amazônia”, afirma Braga.
Além do apoio técnico, a incubadora enfrenta um dos principais gargalos da bioeconomia: a escala das cadeias produtivas. A dependência de insumos sazonais e a dificuldade logística da região obrigam as empresas a adotar processos rastreáveis e tecnologias digitais para equilibrar oferta e demanda. Nesse ponto, a FPF Tech busca criar conexões entre startups, comunidades extrativistas e produtores locais, de modo a garantir fornecimento contínuo e previsível.
Para o diretor-executivo do INDT, Geraldo Feitoza, a questão de escala é um ponto crucial. A Amazônia, na sua avaliação, tem projetos excelentes que por vezes não prosperam justamente pela falta de escala e rastreabilidade. “O INDT tem trabalhado para transformar modelos de produção local em cadeias tecnológicas conectadas, com uso de inteligência artificial, automação, robótica, conectividade e desenvolvimento de novos materiais, entre outros, permitindo transparência, rastreabilidade e previsibilidade, pilares fundamentais para dar escala e atrair investimento. Também estamos atuando neste mesmo caminho com a educação”, acrescentou.
Na avaliação do especialista, a pesquisa deixou de ser apenas técnica; ela precisa hoje ser pensada na perspectiva de viabilidade de negócios e sustentabilidade de longo prazo. “Como também somos uma Unidade Embrapii, essa preocupação está em nossa missão desde sempre, conectando o conhecimento científico com a indústria por meio de um modelo ágil, flexível, de baixa burocracia e com o investimento de recursos não reembolsáveis”, disse Feitoza.

Governo estadual e Suframa buscam destravar
Os governos buscam afinar o discurso quando o assunto é bioeconomia. Enquanto o Governo do Amazonas investe na estruturação de um Plano Estadual de Bioeconomia (PlanBio-AM), que promete criar uma base institucional para o tema, a Suframa, representando o governo federal, busca fortalecer o elo entre a indústria e os negócios sustentáveis, especialmente por meio do Programa Prioritário de Bioeconomia (PPBio).
Na prática, cada um atua em seu campo, mas ambos defendem a ideia de que é preciso organizar os arranjos e facilitar conexões entre quem pesquisa, quem empreende e quem produz. O discurso é de complementaridade, embora o desafio real ainda seja transformar o potencial em resultados concretos.
Do lado estadual, o PlanBio-AM está em fase final de consolidação e, segundo o secretário-executivo de Ciência, Tecnologia e Inovação, Jeibe Medeiros, foi construído a partir de uma ampla escuta: “Percorremos os 62 municípios, ouvindo mais de quatro mil pessoas entre pesquisadores, empreendedores, comunidades, gestores e setor produtivo”. O plano se organiza em cinco eixos — Governança, Descarbonização, Pessoas e Cultura, Ecossistema de Negócios e Patrimônio Genético — e busca integrar o que antes operava de forma dispersa.
A aposta do governo estadual é dar forma a uma governança capaz de articular ciência, indústria e comunidades tradicionais em uma mesma estratégia. “Temos atributos claros: ICTs especializadas, um polo industrial tecnológico e um ecossistema de inovação crescente. Os principais gargalos estão na falta histórica de governança integrada”, admite Medeiros. Na visão do Executivo amazonense, o desafio é fazer convergir agendas públicas e privadas, e não multiplicá-las.
Do lado federal, a Suframa tenta usar os instrumentos que possui — como a Lei de Informática e as contrapartidas do Polo Industrial de Manaus (PIM) — para injetar recursos na bioeconomia regional. O superintendente Bosco Saraiva afirma que a autarquia vê nesse setor uma oportunidade de renovação da própria matriz industrial: “A bioeconomia, com a devida estruturação, tem o pleno potencial de fortalecer as bases econômicas da região, podendo inclusive representar fontes de insumos aos fabricantes do PIM”.
A Suframa também reconhece que Manaus reúne condições únicas para ser o centro da bioinovação na Amazônia. “Em decorrência de fatores legais e geográficos, Manaus tem despontado como um dos principais ecossistemas de inovação da Região Norte”, destaca Saraiva. O superintendente lembra que tanto as indústrias obrigadas a investir em P&D pela legislação da ZFM quanto o PPBio — coordenado pelo Idesam — estão sediados na capital amazonense, o que cria uma concentração de esforços inédita.
Mas, como ocorre na esfera estadual, o discurso federal também esbarra em entraves práticos. Para Saraiva, a bioeconomia ainda precisa de “mais investimento em pesquisa de mercado e infraestrutura logística, assim como mais estímulo para que pesquisadores tornem seus resultados científicos em soluções implementáveis”. Ele cita também a necessidade de “estrutura normativa que facilite essa dinâmica no espaço geográfico de Manaus”, sugerindo que o ambiente regulatório ainda é um obstáculo à expansão.
Tanto Suframa quanto Governo do Estado convergem num ponto: o futuro da bioeconomia depende de educação científica, financiamento e escala de produção. A primeira, para formar mão de obra qualificada; o segundo, para garantir a viabilidade de negócios; e o terceiro, para transformar ideias promissoras em cadeias produtivas reais.
Próximo passo para Manaus
Há consenso entre os principais representantes ouvidos nesta reportagem: Manaus reúne todos os ingredientes para se consolidar como o epicentro da bioeconomia amazônica. Tem infraestrutura industrial, centros de pesquisa de excelência, capital humano qualificado e incentivos econômicos que nenhuma outra cidade da região possui. Mas também há uma constatação comum — ainda falta articulação, escala e políticas públicas mais assertivas para transformar potencial em realidade.
O secretário-executivo de Ciência, Tecnologia e Inovação do Amazonas, Jeibe Medeiros, reconhece que o maior desafio não está na ausência de recursos ou de conhecimento, mas na capacidade de integração entre os atores do ecossistema. “Os principais gargalos estão na fragmentação entre atores e na falta histórica de governança integrada”, afirma. A prioridade, segundo ele, é alinhar indústria, ciência e conhecimento tradicional numa mesma estratégia, evitando sobreposições e disputas institucionais que historicamente atrasaram o avanço da bioeconomia.
Luís Braga, diretor da Fundação Paulo Feitoza (FPF Tech), reforça o mesmo ponto: “O que ainda desafia esse avanço é a falta de políticas públicas assertivas que ajudem os empreendedores e os pequenos empresários de forma mais estratégica”. Ele acrescenta que há lacunas na colaboração entre universidades, indústrias do Polo Industrial de Manaus, startups e comunidades locais. “É essencial ampliar o acesso a investimento e acelerar a estruturação das cadeias produtivas da sociobiodiversidade. Quando ciência, política pública e investimento se encontram, a bioeconomia floresce.”
O professor e empreendedor Emerson Lima, da Terramazonia, ressalta a necessidade de fortalecer as cadeias primárias e a infraestrutura logística, pontos que continuam travando o setor. “O setor primário é uma trava importante. Ainda é difícil conseguir fornecimento contínuo de matéria-prima, há variação de preços e problemas logísticos que dificultam competir com outros centros”, diz. Para ele, organizar a base produtiva e garantir a previsibilidade no fornecimento é tão crucial quanto investir em inovação tecnológica.
Geraldo Feitoza, do INDT, avalia que Manaus tem todas as condições, tecnológicas, humanas e geográficas para assumir esse protagonismo na bioeconomia, se vencer as travas ainda existentes. “Manaus já provou que é capaz de atrair grandes indústrias e formar talentos. O que ainda nos trava são barreiras logísticas, regulatórias e de integração de políticas públicas”, acrescentou.
A partir dessas visões, o quadro fica claro: Manaus está tecnicamente preparada, mas institucionalmente fragmentada. Há avanços concretos — programas de fomento, incubadoras, startups, planos estaduais e marcos regulatórios —, porém, sem uma governança integrada e permanente, os esforços se dispersam. A cidade tem o ecossistema, mas ainda precisa de uma engrenagem que conecte seus elementos. Como Geraldo Feitoza bem lembrou, a Zona Franca de Manaus foi essencial para preservar a floresta; agora precisamos de uma Zona Franca Verde, baseada em conhecimento e tecnologia.
O desafio, portanto, é menos tecnológico e mais político e organizacional. Exige um pacto entre governo, empresas, universidades e comunidades, com metas de longo prazo e mecanismos de cooperação efetiva. Como sintetiza Jeibe Medeiros: “A mudança de mentalidade já começou. A bioeconomia deixou de ser promessa e virou agenda. Agora é hora de consolidar essa agenda como eixo real de desenvolvimento”, concluiu.

